Jamais será esquecido

Through the Darkest of Times exibe a crueza nazista ao colocar o jogador no controle da resistência em Berlim

Nelson Alves Jr.

Há 75 anos, enquanto o exército da ex-União Soviética avança ao centro de Berlim, na Alemanha, o genocida Adolf Hitler e sua esposa, Eva Braun, cometem suicídio para escapar da rendição. O fato, ocorrido em 30 de abril de 1945, marca o início do fim da Segunda Guerra Mundial, oficialmente selada em 8 de maio do mesmo ano. Até a derrocada alemã, entretanto, o país viveu um período tenebroso sobre o regime assassino dos nazistas. “Nós nos perguntamos como alguém que se opunha a Hitler e os nazistas deve ter se sentido quando justamente os nazistas chegaram ao poder. Como isso deve ter sido?”, questionam Jorg Friedrich e Sebastian St. Schulz, fundadores do estúdio alemão Paintbucket Games e criadores do jogo Through the Darkest of Times.

O apontamento da dupla, cuja experiência remonta ao desenvolvimento de Spec Ops: The Line, quando se conheceram em 2007, refere-se, principalmente, à falsa sensação de que a maioria dos alemães compartilhava da sandice. Não é verdade. O partido de extrema-direita ascendeu ao poder em 1932 com apenas 37% dos votos. O jogo começa exatamente do ponto em que Hitler é nomeado chanceler, em janeiro de 1933.

Ex-militar de baixo escalão e sem competência para avançar na carreira, o aspirante a assassino em série ganha popularidade em um período em que os alemães haviam perdido a confiança nos políticos. Usou retórica de botequim, com conteúdo raso e atitudes politicamente incorretas. Nos discursos inflamados e apoteóticos, prega “a restauração da moral alemã”, justamente para agradar a ala religiosa, então horrorizada com o crescimento da arte e dos costumes progressistas. Exacerba o populismo rasteiro, culpa a esquerda e incita o ódio às minorias, incluindo, mas não só, homossexuais, feministas e imigrantes. Em pouco tempo ganha o apoio dos radicais, enquanto quem se opunha prefere evitar o confronto. “Alemanha acima de tudo” era o slogan.

Embora seja baseado em fatos reais, vale ressaltar que os grupos de resistência de TTDOT são fictícios. Portanto, não espere controlar membros oposicionistas do Rosa Branca nem tampouco os espiões do Orquestra Vermelha. O que você pode esperar, sim, é uma partida profundamente incômoda, com momentos de puro desespero e agonia. Ainda que seja de estratégia, a mecânica foi criada de forma a minimizar a complexidade do gênero para torná-lo mais palatável.

O funcionamento consiste em destacar quais membros do grupo farão determinada ação em cada turno. Cada turno equivale a uma semana. Cada capítulo cobre um determinado período do regime ditatorial. Os personagens são gerados aleatoriamente, com distintas características, habilidades e visões relativas aos acontecimentos. Como líder do grupo, cabe a você planejar e gerenciar tanto as ações quanto os conflitos internos que possam surgir. A decisão de quando conseguir mais recursos, panfletar contra o regime ou evitar locais vigiados pelo Gestapo, a polícia nazista, figura entre as suas responsabilidades.

A narrativa não alivia em nenhum momento, e é justamente esse um dos pontos de maior destaque do jogo. Situações limítrofes em que a sua decisão não só decide as ações, mas o destino do grupo de resistência. Diferentemente do tradicional, não há vitória ou derrota. Há meios de resistir apenas, torcendo para que o horror termine logo.

Vale mencionar também que TTDOT finca-se na história como sendo o primeiro jogo alemão a receber autorização do governo a utilizar símbolos nazistas. A legislação alemã, cujo órgão regulatório da indústria de jogos atende por USK, proíbe o uso de tais imagens exceto em casos de pesquisas jornalísticas, história ou arte. Até 2018, jogos não se enquadravam em nenhuma dessas categorias e, caso fizessem qualquer referência aos símbolos do regime assassino, eram reprovados.

Na conversa a seguir, a dupla conta sobre o fascínio por temáticas históricas nos jogos e detalhes que o guiaram na produção de Through the Darkest of Times.

JogaeTV Vocês se conheceram durante a produção de Spec Ops: The Line, outro jogo profundamente impactante, certo? Em que momento decidiram abrir o próprio estúdio? Sempre me deparo com histórias de profissionais que abriram mão de criar jogos AAA para desenvolver seus próprios jogos “menores”. É tão ruim assim trabalhar em grandes produções?

Jorg Friedrich e Sebastian St. Schulz Depois de nos conhecermos em 2007, na YAGER, desenvolvendo o Spec Ops, trabalhamos juntos por mais de dez anos. Gostamos de grandes equipes em grandes projetos. Houve tempos difíceis no meio, mas no geral, foi um baita aprendizado. Então, eventualmente, queríamos trabalhar em algo mais pessoal, algo que realmente tivesse a ver conosco, com nossa perspectiva e visão de mundo. Então 2016 aconteceu. Nós dois somos pessoas políticas; discutimos política o tempo todo – e discutimos muito. Em 2016, muitas coisas aconteceram politicamente que nos chocaram: a Grã-Bretanha votou para deixar a União Européia; Trump se tornou presidente; em toda a Europa você via partidos de direita e muitas vezes racistas em ascensão. Isso nos preocupou muito e pensamos que realmente deveríamos fazer algo a respeito. Como a única coisa em que somos bons é criar jogos, pensamos que deveríamos tentar criar um jogo com potencial para melhorar um pouco as coisas. Foi quando decidimos iniciar o Paintbucket e fazer Through the Darkest of Times.

JogaeTV Eu terminei o jogo despedaçado psicologicamente. Mesmo ciente do que o conteúdo tratava, eu não estava preparado para a maneira com que era tratado. Claro que isso é muito particular e cada jogador deve reagir de uma maneira. Qual era a intenção de vocês em relação ao sentimento gerado no usuário?

JF e SS Nós nos perguntamos como alguém que se opunha a Hitler e aos nazistas deve ter se sentido quando os nazistas chegaram ao poder. Como você se sentiria se tivesse que assistir alguém mau assumir o poder? Como se sentiria se a maioria das pessoas ao seu redor, seus colegas de trabalho, seus amigos e parentes começassem a seguir essa ideologia? Se tivesse que vê-los cometendo crimes e ninguém os impedisse? Pior ainda, de saber que falar em voz alta contra isso se tornou crime! É claro que há pouco que você possa fazer, provavelmente nunca conseguiria detê-los, mas ainda assim arriscaria a sua vida tentando. Como isso deve ter sido? É isso que tentamos transmitir. Colocamos você no lugar de alguém assim. Uma pessoa normal. Alguém com pouco ou nenhum poder.

JogaeTV Não bastasse tudo o que acontece na partida, no final surge uma tela dizendo “Jamais será esquecido”. Qual a chance de ser esquecido?

JF e SS Acreditamos que muito do que consideramos hoje a base de nossas civilizações humanas, como direitos humanos universais, tratando a guerra como crime, colaboração global, é uma reação aos horrores da Segunda Guerra Mundial, do nazismo e do holocausto. Obviamente, as pessoas estavam lutando pelos direitos humanos antes e, antes da ONU, havia a Liga das Nações, mas ainda assim. Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo ficou chocado com os crimes cometidos pelos nazistas e havia um forte desejo em todas as nações de impedir que algo assim acontecesse novamente. Hoje, 75 anos após o fim da Guerra, a maioria dos sobreviventes faleceu e fica mais difícil de lembrar. Mas não devemos esquecer, para que possamos tentar impedir que isso aconteça novamente. Isso aconteceu uma vez; isso pode acontecer novamente.

JogaeTV Do ponto de vista de um brasileiro, cujo contato com o nazismo é basicamente via livros e filmes (embora existam alguns imbecis circulando às escondidas por aqui), é difícil entender exatamente o impacto que um jogo como o de vocês tem, por exemplo, na Europa, ou mais especificamente na Alemanha. Como foi a recepção aí?

JF e SS Estávamos preocupados no começo com o que as pessoas poderiam dizer, por causa do tópico, e inicialmente as reações eram cautelosas. Mas quando mostramos o jogo e explicamos o conceito, as reações sempre foram incrivelmente positivas. Parece que havia uma lacuna que nosso jogo poderia preencher.

JogaeTV Como o governo alemão enxerga as obras culturais que tratam do nazismo? Há algum tipo de incentivo fiscal? Algum tipo de exigência ou orientação em como o tema deve ser retratado?

JF e SS Não há incentivo fiscal. Existem certas regras relacionadas ao simbolismo, que só podem ser usadas em um contexto artístico ou científico, e nunca para exaltar o tema.

JogaeTV Embora nenhum grupo de resistência real, como o Rosa Branca, tenha sido usado no jogo, que tipo de conteúdo real vocês usaram para criarem a resistência fictícia? Digo, quão próximo dos membros originais estão os personagens do jogo?

JF e SS Os personagens são gerados aleatoriamente, mas nosso objetivo era projetar seus parâmetros de uma maneira que as pessoas geradas pelo jogo fossem críveis, que desse a ideia de que poderiam ter existido assim. Muitos dos pequenos eventos pessoais, conflitos e discussões do grupo são baseados em histórias verdadeiras e relatos de combatentes da resistência.

JogaeTV Aliás, imagino que vocês devam ter pesquisado muito para escrever o roteiro, que é um primor. Entre o início da escrita e o ponto final, quanto tempo levou para concluir o roteiro? Relativo ao tamanho, estamos falando de quantas páginas aproximadamente?

JF e SS O jogo tem 125 mil palavras, portanto, cerca de 280 páginas somente em inglês. Não sei quantas horas foram necessárias, mas foram muitas. Nós trabalhamos no roteiro durante três anos inteiros.

JogaeTV Ainda sobre as pesquisas, quais foram os principais materiais usados de base pela equipe?

JF e SS Livros, entrevistas com testemunhas e combatentes da resistência. Também fomos a locais históricos, visitamos áreas que aparecem no jogo e conversamos com historiadores.
Para o visual, também vimos toneladas de fotos e filmes originais da época.

JogaeTV As manchetes dos jornais que aparecem no jogo são reais? Como vocês decidiram quais seriam usadas? Foi a partir delas que nortearam os eventos do jogo ou primeiro veio o roteiro e depois as manchetes como complemento?

JF e SS Os eventos são reais, mas as manchetes são escritas por nós. Tínhamos uma visão inicial das fases do Terceiro Reich sobre as quais queríamos falar. Isso definiu os capítulos. Cada capítulo deveria durar seis meses. Sempre começamos com uma grande figura do capítulo e a época que foi descrita nele. O que foi isso? O que era típico para essa fase? Quais foram os grandes eventos? Depois disso, aumentamos o zoom, pesquisamos e descobrimos eventos menores que aconteciam toda semana. Eu escolhi os que achei condizentes para o capítulo. As histórias foram escritas depois disso e seguiram a linha do tempo histórica.

JogaeTV Quais os planos para o futuro do estúdio? Vocês pretendem criar outros jogos com temática política ou a ideia é diversificar?

JF e SS Por enquanto ainda estamos trabalhando mais no Through the Darkest of Times, mas já temos planos para jogos futuros e eles permanecerão políticos e históricos, porque é isso que gostamos de fazer e acreditamos que somos bons. Como o TTDOT é um jogo sobre fascismo e guerra, nosso próximo jogo pode ser sobre democracia e paz.

JogaeTV Gostaria que vocês indicassem um filme e um livro que complementem ou aprofundem os assuntos tratados no jogo.

JF e SS
13 Minutos (Filme/2015): a verdadeira história do trabalhador Georg Elser e sua tentativa fracassada de assassinar Hitler;

Morrer Sozinho em Berlim (Autor Hans Fallada/2018): baseado na história real de marido e mulher agindo sozinhos e tentando acordar as pessoas por meio de cartões-postais;

A Ponte da Desilusão (Filme/1959:) sobre um grupo de meninos que são enviados para lutar contra as tropas americanas quando a guerra já está perdida;

O Diário de Anne Frank (Livro/1947): diário escrito pela jovem judia Anne Frank quando ela e sua família estavam escondidos dos nazistas;

Sophie Scholl: Uma Mulher Contra Hitler (Filme/ 2005): história verdadeira da jovem estudante Sophie Scholl, membro do grupo de resistência Rosa Branca.

FICHA
Through the Darkest of Times
Produtora: Paintbucket Games
Distribuidora: HandyGames
Plataformas: PC, Mac, Android e iOS
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